sexta-feira, 1 de abril de 2011

O Mundo à Nossa Volta

O valor divino do humano (Dário Pedroso, s.j.)


O «tempo comum» da liturgia é um apelo a viver o quotidiano com audácia, com compromisso, com intensidade de vida evangélica, com determinação, com coração, com encanto e alegria, dizendo um «não» vivencial à rotina, à inércia, ao deixar correr, à mediocridade, à apatia, ao stress, ao reboliço, à vida em azáfama e sem sentido. O «tempo comum» é uma oportunidade cristã, um dom de Deus, uma oferta da Igreja a vivermos o quotidiano com fulgor de infinito, com semente de divino, com desassombro, com intimidade com Deus a tal ponto que sejamos «contemplativos na acção». Temos, pois, diante de nós, algo que nos pode ajudar a viver o comum dum modo «não comum», o quotidiano com dimensões «divinas».

A liturgia, mãe e mestra da vida, convida-nos a dar a cada momento do dia a sua densidade, o seu valor. Trata-se da determinação de fazer bem todas as coisas (age quod agis), de aceitar o desafio do aforismo: «faz o que deves e está no que fazes». Faz o que deves, ou seja, o que a vontade de Deus quer neste momento, aquilo que o Senhor permite através dum horário, duma circunstância, duma norma, dum dever de estado, dum compromisso assumido, etc. E está plenamente no que fazes, ou seja, fá-lo com garra, com encanto, com a máxima perfeição, com ousadia cristã que busca a perfeição máxima em tudo o que se realiza. E se é feito com perfeição já tem a marca do divino, já está integrado no projecto cristão de salvação, já tem sabor evangélico, já é construtor da novidade de Deus, em tudo e em todos. Na medida em que a vida não é levada com mediocridade, na medida em que sabemos colocar a perfeição no que fazemos, rezamos, sofremos, etc., estamos a construir a santidade da própria vida, mesmo se o que fazemos parece simples e banal. O desejo de perfeição dá-lhe um sabor evangélico, uma tonalidade de divino, uma dimensão de santidade.

Quantas coisas dizemos, fazemos, sofremos, quantas alegrias e sonhos, quantos planos e projectos, quantos momentos de entusiasmo ou de dúvida, quanta luta e quantas vitórias, quantas tentações e momentos de fragilidade repassam o nosso quotidiano. Importa tomar tudo em «nossas mãos», sobretudo em «nosso coração», e oferecer ao Senhor. Ao jeito da gotita de água que no ofertório se deita no vinho e é diluída, assumida pelo vinho, assim a nossa existência, com o desejo de perfeição, com a audácia de sermos santos, se torna redentora e divina unida a Jesus, o único Redentor. Tudo oferecido para fazer de nós próprios «hóstia vivas». Tudo mergulhado em Cristo Jesus para ser oferta permanente digna do amor do Pai. Tudo mergulhado n’Ele, feito com Ele, feito por Ele, para que o nosso quotidiano tenha valor divino, para que o humano se torne redentor.

O humano, depois da Encarnação do Verbo, tem sempre algo de divino. Podemos dizer que depois desse momento eloquente em que a divindade assumiu a nossa natureza, nada mais é profano na nossa vida, tudo tem o selo divino, pois estamos enxertados em Deus, a Trindade habita-nos, somos templos vivos da sua presença. E se tudo tem o selo divino, tudo deve ter a «solenidade» própria d’Aquele que trazemos em nós como tesouro em vasos de barro. Dar solenidade a cada momento, fazer tudo com a máxima perfeição é dar valor divino ao humano, que pode, em certas circunstâncias, parecer-nos pobre, rotineiro, sem riqueza, sem densidade. Mas tem-na, cabe-nos a nós descobri-la e vivê-la. Cada acção, cada trabalho, cada momento, cada segundo é partilha da divindade que está em nós, da graça que possuímos, do Deus que nos invade e que faz tenda no nosso interior.

Dar valor divino ao humano é aceitar o desafio da fé que nos ensina que somos templos da Trindade, que Deus está «escondido» no mais profundo de nós próprios, que quer agir em nós e connosco.

Dar valor divino ao humano é assumir com audácia e consciência cristã que, como baptizados, somos redentores com Cristo Redentor e que, unidos a Ele, nada se perde do tecido da nossa vida quotidiana, da riqueza da nossa acção.

Dar valor divino ao humano é ter os olhos da alma bem abertos para descobrir as centelhas do divino que proliferam em cada pessoa, em cada planta, em cada beleza da natureza que Deus criou por amor.

Dar valor divino ao humano é saber morrer a cada instante àquilo que em nós é «homem velho», que é mistério de pecado e de iniquidade, que é semente de mal, para nos deixarmos revestir de Cristo e viver a sua graça.

Dar valor divino ao humano parte da convicção, nascida da fé, de que o nosso sofrimento, as mil e umas circunstâncias difíceis da vida são um verdadeiro tesouro, se mergulhados em Cristo, se assumidos com audácia evangélica.

Dar valor divino ao humano, colocando a máxima perfeição em tudo o que fazemos, dizemos, rezamos, pois é obra feita para o Senhor, realizada em união com Ele, que merece sempre o melhor, o mais santo, o mais perfeito.

Dar valor divino ao humano, vivendo as nossas alegrias e tempos de lazer, não como fáceis contentamentos, mas como parcelas vivas d’Aquele que é a felicidade suprema, a alegria sem limites, o Senhor vivo e Ressuscitado.

Não desbaratemos a vida, não nos deixemos conduzir pela inércia ou pela rotina, não deixemos que a vida tome conta de nós, que o stress nos invada o quotidiano. Dêmos, com determinação e audácia, a solenidade que cada momento merece. Vivamos unidos Àquele que é a Vida verdadeira e que dá sentido o tudo o que vivemos. Saibamos colocar intensidade interior, fulgor espiritual, tensão evangélica em tudo o que, ao longo do dia, nos é dado viver. Alegres na esperança, vivamos a felicidade que comporta cada momento presente, pois é a única riqueza que possuímos. Coloquemos o passado na misericórdia divina, e o futuro, entreguemo-lo à sua providência. E cada momento não volta, não se repete. Não percamos essa riqueza. Aproveitemos esse tesouro.

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