sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O que a vaca e o burro (dentro ou fora) do presépio

Natal

Surpreende o facto de que em certos meios de comunicação o conteúdo central do livro de Bento XVI, A infância de Jesus, foi posto em segundo plano em relação à questão da presença ou não do boi e do burro na gruta de Belém. Desviando a atenção do ponto focal da obra que, como o próprio Papa sublinhou, não é um ato de ensinamento pontifício, mas a expressão da sua pesquisa pessoal e teológica sobre o rosto do Senhor.
Talvez, além do aspeto anedótico, a confusão mediática seja um sinal da secularização e da desertificação espiritual que Bento XVI identifica como o problema principal que a Igreja deve enfrentar no nosso tempo. E um dos sintomas mais dolorosos é a marginalização silenciosa e transversal de Deus da vida pessoal e pública.
Afirma-o também o arcebispo e teólogo espanhol Fernando Sebastián na sua última obra La fe que nos salva, quando afirma que «o problema número um da Igreja de hoje consiste em ajudar as pessoas a crer». Com efeito, na sua opinião, «ontem o ateísmo subsistia na mente de alguns filósofos. Hoje, temo-lo em casa, nos primos, nos sobrinhos e nos vizinhos. O ateísmo envolve todos nós, e o viver como se Deus não existisse tornou-se uma espécie de ateísmo por omissão». Remediar a esta situação e voltar a pôr Deus no centro é o que Bento XVI está a fazer.
Para o Papa, este compromisso é necessário também na Igreja, porque «o desafio de uma mentalidade fechada ao transcendente — disse a 25 de novembro de 2011 — obriga também os próprios cristãos a voltar de modo mais decidido à centralidade de Deus (…) Por isso, não menos urgente é propor de novo a questão de Deus, inclusive no próprio tecido eclesial».
A este compromisso de voltar a Deus, Bento XVI dedica há mais de um mês as suas catequeses de quarta-feira. Como aconteceu no passado, nas lições de teologia que o professor Joseph Ratzinger dava aos estudantes universitários de Tübingen — reunidas há mais de quarenta anos no volume Einführung in das Christentum («Introdução ao Cristianismo» — assim no atual ciclo de catequeses o Papa explicou que a «fé não é simples assentimento intelectual do homem a verdades particulares sobre Deus; é um gesto mediante o qual me confio livremente a um Deus que é Pai e que me ama; é adesão a um “Tu” que me dá esperança e confiança. Sem dúvida, esta adesão a Deus não está isenta de conteúdos: com ela estamos conscientes de que o próprio Deus nos é indicado em Cristo, mostrou o seu rosto e fez-se realmente próximo de cada um de nós» (24 de outubro de 2012).
Esta é a proposta fundamental do Ano da Fé, que o Pontífice proclamou para reavivar na Igreja a alegria de crer através da recuperação do primado de Deus, pois «se Deus perder a centralidade, o homem perde o seu justo lugar, e não encontra mais a sua colocação na criação, nas relações com os outros» (14 de novembro de 2012). Sem Deus, tudo de volta contra o homem.
Por sua vez o homem, que Bento XVI define «mendigo de Deus», traz em si mesmo «um desejo misterioso de Deus» (7 de novembro de 2012), que não pode permanecer uma paixão inútil, mas deve transformar-se num anseio profundo, alimentado pelas alegrias autênticas e pelo desejo de plenitude.
Sem dúvida, a resposta do homem é essencialmente resposta a Deus: mas, também e precisamente por isso, é resposta aos outros, através da obra de evangelização, que por sua vez é comunicação com Deus. «Falar de Deus — recorda o Papa — é comunicar, com força e simplicidade, com a palavra e a vida, aquilo que é essencial: o Deus de Jesus Cristo, aquele Deus que nos mostrou um amor tão grande, a ponto de se encarnar, morrer e ressuscitar por nós; aquele Deus que pede para O seguir e para se deixar transformar pelo seu amor imenso, para renovar a nossa vida e os nossos relacionamentos; aquele Deus que nos concedeu a Igreja, para caminharmos juntos e, através da Palavra e dos Sacramentos, renovarmos toda a Cidade dos homens, a fim de que ela possa tornar-se Cidade de Deus» (28 de novembro de 2012).
As de Bento XVI são catequeses do essencial, para conduzir a Deus os homens e as mulheres do nosso tempo.

José María Gil Tamayo
Título original: O meu vizinho ateu
In L'Osservatore Romano, 30.11.2012

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ano da fé: a racionalidade da fé em Deus

Bento XVI continua suas reflexões sobre o Ano da Fé na Audiência Geral
CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 21 de Novembro de 2012(ZENIT.org) - Apresentamos as palavras de Bento XVI durante a catequese realizada na tradicional Audiência Geral na sala Paulo VI, no Vaticano.
Queridos irmãos e irmãs,
Continuamos avançando neste Ano da Fé carregando no coração a esperança de redescobrir a grande alegria que existe no ato de acreditar, bem como a esperança de reencontrar o entusiasmo para comunicar a todos as verdades da fé. Verdades que não são uma simples mensagem sobre Deus, uma informação a seu respeito. Verdades que expressam o evento do encontro de Deus com os homens, encontro salvífico e libertador, que realiza as aspirações mais profundas do homem, o seu anseio de paz, fraternidade e amor.
A fé nos leva a descobrir que o encontro com Deus melhora, aperfeiçoa e eleva o que há de verdadeiro, de bom e de belo no homem. Acontece, portanto, que, enquanto Deus se revela e se deixa conhecer, o homem vem a saber quem é Deus e, conhecendo-o, descobre a si mesmo, a sua origem, seu destino, a grandeza e a dignidade da vida humana.
A fé permite um conhecimento autêntico de Deus, que envolve toda a pessoa: é um saber no sentido latino de "sàpere" [degustar], um conhecimento que dá “sabor” à vida, um novo sabor de existir, uma maneira alegre de estar no mundo. A fé se exprime no dom de si mesmo aos outros, na fraternidade que nos torna solidários, capazes de amar, vencedores da solidão que nos deixa tristes.
Esse conhecimento de Deus através da fé não é, portanto, só intelectual, mas vital.
É o conhecimento do Deus-Amor, graças ao seu próprio amor. O amor de Deus nos mostra, nos abre os olhos, nos permite conhecer toda a realidade, indo além das perspectivas estreitas do individualismo e do subjetivismo, que desorientam as consciências. O conhecimento de Deus é uma experiência de fé, que implica, ao mesmo tempo, um caminho intelectual e moral: profundamente tocados pela presença do Espírito de Jesus em nós, superamos os horizontes do nosso egoísmo e nos abrimos para os verdadeiros valores da existência.
Hoje, nesta catequese, quero focar na razoabilidade da fé em Deus.
A tradição católica, desde o início, rejeitou o assim chamado fideísmo, que é a vontade de acreditar contra a razão. Credo quia absurdum (creio porque é absurdo) não é a fórmula que interpreta a fé católica. Deus não é um absurdo: em todo caso, é um mistério. O mistério, por sua vez, não é irracional: ele é um excesso de sentido, de significado, de verdade. Se, ao olhar para o mistério, a razão vê o escuro, não é porque não haja luz no mistério, mas sim porque há luz demais. Assim como, quando os olhos de um homem se dirigem irritamente para o sol, eles vêem apenas escuridão. Mas quem diria que o sol não é brilhante? Quem diria que ele não é a fonte da luz? A fé nos permite olhar para o "sol", Deus, porque é o acolhimento da sua revelação na história e, por assim dizer, recebe realmente todo o brilho do mistério de Deus, reconhecendo o grande milagre: Deus veio até o homem, se ofereceu ao seu conhecimento, condescendendo à limitação natural da razão humana (cf. Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, 13).
Ao mesmo tempo, com a sua graça, Deus ilumina a razão, lhe abre novos horizontes, mensuráveis e infinitos. A fé, por isto, é um forte incentivo para buscarmos sempre, para nunca pararmos nem nos acomodarmos na busca incansável da verdade e da realidade. É vão o preconceito de alguns pensadores modernos, que afirmam que a razão humana seria bloqueada pelos dogmas de fé. É exactamente o oposto, como os grandes mestres da tradição católica mostraram. Santo Agostinho, antes da sua conversão, procura pela verdade com grande inquietação, através de todas as filosofias disponíveis, achando todas insatisfatórias. Sua meticulosa procura racional é para ele uma pedagogia significativa para o encontro com a Verdade de Cristo. Quando ele diz "compreende para crer e crê para compreender" (Discurso 43, 9: PL 38, 258), é como se estivesse contando a sua própria experiência de vida. Intelecto e fé, diante da revelação divina, não são estranhos nem antagonistas; são, ambos, condições para compreendermos o seu significado, para recebermos a autêntica mensagem, aproximando-nos do limiar do mistério.
Santo Agostinho, junto com muitos outros autores cristãos, é testemunha de uma fé que se exercita com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste caminho, Santo Anselmo dirá em seu Proslogion que a fé católica é fides quaerens intellectum, e que a busca da inteligência é um ato interior do acreditar. Será especialmente São Tomás de Aquino quem lidará com a razão dos filósofos, mostrando a força fecunda e nova da vitalidade racional que inunda o pensamento humano a partir dos princípios e das verdades da fé cristã.
A fé católica é razoável e tem confiança na razão humana. O concílio Vaticano I, na constituição dogmática Dei Filius, disse que a razão é capaz de conhecer com certeza a existência de Deus através da criação, e que apenas a fé tem a oportunidade de conhecer "facilmente, com certeza absoluta e sem erro "(DS 3005) as verdades sobre Deus, à luz da graça. O conhecimento da fé, ainda, não é contrário à razão. O beato papa João Paulo II, na encíclica Fides et ratio, resume: "A razão humana não é anulada nem humilhada quando presta assentimento aos conteúdos de fé, que são, em qualquer caso, alcançados por livre e consciente escolha" (número 43).
No irresistível desejo da verdade, só a relação harmoniosa entre a fé e a razão é o caminho certo que conduz a Deus e à realização de si mesmo.
Esta doutrina é facilmente reconhecível em todo o Novo Testamento. São Paulo, escrevendo aos coríntios, sustenta: "Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos buscam a sabedoria, nós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios" (1 Cor 1,22-23 ).
Deus, de fato, salvou o mundo não por um ato de poder, mas através da humilhação do seu Filho único: de acordo com os padrões humanos, o modo incomum escolhido por Deus contradiz as exigências da sabedoria grega. No entanto, a cruz de Cristo tem sua razão, que São Paulo chama de logos tou staurou, a palavra da cruz (1 Co 1,18). Aqui, o termo logos indica tanto a palavra quanto a razão, e, se alude à palavra, é porque expressa verbalmente processos que a razão elabora. Paulo, assim, vê na cruz não um evento irracional, mas um fato da salvação, que tem uma racionalidade própria, reconhecível à luz da fé. Ao mesmo tempo, ele tem tanta confiança na razão humana que se maravilha de que muitos, mesmo vendo as obras realizadas por Deus, se obstinem em não acreditar nele. Diz ele em sua carta aos romanos: "Os atributos invisíveis [de Deus], ​​ou seja, o seu eterno poder e a sua natureza divina, são contemplados e compreendidos na criação do mundo através das obras das suas mãos" (1,20).
Também São Pedro exorta os cristãos da diáspora para adorarem "o Cristo Senhor em vossos corações, sempre prontos a responder a todo aquele que vos pedir razões da esperança que habita em vós" (1 Pe 3,15). Em um clima de perseguição e de forte necessidade de testemunhar a fé, os crentes são convidados a justificar a sua adesão à palavra do evangelho, a dar razão da sua esperança.
É nesse terreno, de ligação frutuosa entre o compreender e o acreditar, que está enraizada ainda a relação virtuosa entre ciência e fé. A pesquisa científica leva ao conhecimento de verdades sempre novas sobre o homem e sobre o cosmos, conforme sabemos. O verdadeiro bem da humanidade, que é acessível pela fé, abre o horizonte para a sua jornada de descoberta. Devem ser incentivadas, portanto, as pesquisas a serviço da vida, que visam erradicar a doença. Também são importantes as investigações sobre os segredos do nosso planeta e do universo, na consciência de que o homem é a coroa da criação, não com o fim de explorá-la insensatamente, mas de preservá-la e torná-la habitável.
Assim, vivida na verdade, a fé não entra em conflito com a ciência, mas coopera com ela, oferecendo critérios básicos para que ela promova o bem de todos, e lhe pede renunciar apenas às tentativas que, em oposição ao plano original de Deus, podem produzir efeitos que se voltam contra o próprio homem. Por isso mesmo, é razoável acreditar: se a ciência é uma aliada valiosa para a compreensão do plano de Deus no universo, a fé permite que o progresso científico aconteça sempre em prol do bem e da verdade do homem, permanecendo fiel a esse mesmo plano.
É por isso que é crucial para as pessoas abrir-se à fé e conhecer a Deus e o seu plano de salvação em Jesus Cristo. O evangelho inaugura um novo humanismo, uma autêntica "gramática" do homem e de toda a realidade. O Catecismo da Igreja Católica afirma: "A verdade de Deus e a sua sabedoria sustentam a ordem da criação e do governo do mundo. Deus, o único que "fez o céu e a terra" (Sl 115,15), pode dar, somente ele, o verdadeiro conhecimento de cada coisa criada na relação com ele" (número 216).
Esperamos, portanto, que o nosso compromisso na evangelização ajude a dar nova centralidade ao evangelho na vida de muitos homens e mulheres do nosso tempo. E oramos para que todos reencontrem em Cristo o sentido da vida e o fundamento da verdadeira liberdade: sem Deus, o homem se perde. Os testemunhos daqueles que vieram antes de nós e que dedicaram a vida ao evangelho o confirma para sempre. É razoável acreditar, pois o que está em jogo é a nossa existência. Vale a pena nos desgastarmos por Cristo. Só ele satisfaz os desejos de verdade e de bem enraizados na alma de cada homem: agora, no tempo que passa, e no dia sem fim da eternidade bem-aventurada.
(Após a catequese)
De coração, saúdo todos os peregrinos de língua portuguesa, com destaque para os grupos de Aracruz, Aparecida de Goiânia e Palmas, confiando as suas famílias e comunidades à Virgem Maria e pedindo-Lhe que nelas se mantenha viva a luz de Deus. Sobre vós e os vossos entes queridos, desça a minha Bênção.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ano da fé: caminhos para conhecer a Deus

Palavras de Bento XVI na Audiência Geral de quarta-feira


CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 14 de novembro de 2012(ZENIT.org) - Apresentamos as palavras da catequese de Bento XVI pronunciadas durante a tradicional Audiência Geral na sala Paulo VI, no Vaticano.
Queridos irmãos e irmãs,
Na quarta-feira passada, refletimos sobre o desejo de Deus que o ser humano traz no profundo da alma. Hoje, eu gostaria de continuar a aprofundar este aspecto, meditando brevemente, com vocês, sobre alguns caminhos para chegarmos ao conhecimento de Deus.
Devo mencionar, entretanto, que a iniciativa de Deus sempre precede qualquer ação do homem, e, mesmo no caminho rumo a Ele, é Ele quem primeiro nos ilumina, nos orienta e nos conduz, respeitando sempre a nossa liberdade. E é sempre Ele quem nos faz entrar na sua intimidade, revelando-se e doando-nos a graça para acolher essa revelação na fé. Não nos esqueçamos, nunca, da experiência de Santo Agostinho: não somos nós que chegamos a possuir a verdade quando a procuramos, mas é a Verdade quem nos procura e nos possui.
Existem vias, porém, que podem abrir o coração do homem ao conhecimento de Deus. Há sinais que levam a Deus. É claro que, muitas vezes, corremos o risco de ser ofuscados pelo brilho do mundano, que nos torna menos capazes de percorrer essas rotas e de ler esses sinais. Mas Deus não se cansa de olhar para nós, é fiel ao homem que criou e redimiu, permanece perto das nossas vidas, porque nos ama. Esta é uma certeza que deve nos acompanhar todos os dias, ainda que certas mentalidades difusas tornem mais difícil para a Igreja e para o cristão comunicar a alegria do Evangelho a toda criatura e levar a todos ao encontro com Jesus, o único Salvador do mundo. Esta, no entanto, é a nossa missão, a missão da Igreja; e cada crente deve vivê-la com alegria, sentindo-a como sua própria, através de uma vida verdadeiramente animada pela fé, marcada pela caridade, pelo serviço a Deus e aos outros, e capaz de irradiar esperança. Esta missão brilha especialmente na santidade, à qual todos nós somos chamados.
Hoje, como sabemos, não faltam dificuldades e provações para a fé, muitas vezes mal compreendida, desafiada, rejeitada. São Pedro disse aos seus cristãos: "Estai sempre prontos a responder, mas com mansidão e respeito, a quem vos pedir razões da esperança que vos habita o coração" (1 Pd 3,15). No passado, no Ocidente, em uma sociedade considerada cristã, a fé era o ambiente em que tudo se desenrolava. A referência e a adesão a Deus, para a maioria das pessoas, fazia parte da vida cotidiana. Quem não acreditava era quem tinha que justificar a sua descrença. Em nosso mundo, a situação mudou e, cada vez mais, quem acredita precisa ser capaz de dar razões da sua fé.
O beato João Paulo II, na encíclica Fides et Ratio, enfatizou que a fé é posta à prova nestes tempos, atravessados por formas sutis e insidiosas de ateísmo teórico e prático (cf. 46-47). A partir do Iluminismo, a crítica à religião se intensificou; a história foi marcada também pela presença de sistemas ateus, nos quais Deus foi considerado como uma mera projeção da mente humana, como uma ilusão e produto de uma sociedade já distorcida por tantas alienações. O século passado conheceu um forte e crescente secularismo, em nome da autonomia absoluta do homem, considerado como medida e artífice da realidade, mas empobrecido em seu ser criado "à imagem e semelhança de Deus".
O nosso tempo verifica um fenômeno particularmente perigoso para a fé: há uma forma de ateísmo que se define, precisamente, como "prático", que não nega as verdades da fé nem os rituais religiosos, mas, simplesmente, os considera irrelevantes para a existência cotidiana, desarraigados da vida, inúteis. Muitas vezes, portanto, acredita-se em Deus de modo superficial, e se vive "como se Deus não existisse" (etsi Deus non daretur). No final, porém, este modo de vida é ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença quanto à fé e quanto à questão de Deus.
Na realidade, o homem separado de Deus se reduz a uma única dimensão, a horizontal, e esse reducionismo é justamente uma das causas fundamentais dos totalitarismos que tiveram consequências trágicas no século passado, bem como da crise de valores que testemunhamos na realidade atual. Obscurecendo a referência a Deus, foi obscurecido também o horizonte ético, para dar espaço ao relativismo e a uma concepção ambígua de liberdade, que, em vez de ser libertadora, acaba por amarrar o homem a ídolos. As tentações que Jesus enfrentou no deserto, antes do seu ministério público, representam bem os "ídolos" que fascinam o homem quando ele não vai além de si mesmo. Quando Deus perde a centralidade, o homem perde o seu lugar, não encontra mais o seu lugar na criação, no relacionamento com os outros. Não feneceu o que a sabedoria antiga evocava com o mito de Prometeu: o homem pensa que pode se tornar "deus", mestre da vida e da morte.
Diante deste quadro, a Igreja, fiel a Cristo, não deixa jamais de afirmar a verdade sobre o homem e sobre o seu destino. O concílio Vaticano II afirma de forma sucinta: "A razão mais alta da dignidade do homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus. Desde o seu nascimento, o homem já está convidado a conversar com Deus. Ele não existe, aliás, a não ser porque, criado por Deus por amor, é mantido por Ele também por amor, nem pode viver plenamente segundo a verdade se não o reconhecer livremente e não se confiar ao seu Criador "(Gaudium et Spes, 19).
Que respostas, então, deve dar a fé, com "mansidão e respeito", ao ateísmo, ao ceticismo e à indiferença para com a dimensão vertical, a fim de que o homem do nosso tempo continue se questionando sobre a existência de Deus e percorrendo os caminhos que levam a Ele?
Eu gostaria de mencionar alguns aspectos, resultantes tanto da reflexão natural quanto da força da fé. Gostaria, muito brevemente, de resumi-los em três palavras: o mundo, o homem, a fé.
Primeiro: o mundo. Santo Agostinho, que em sua vida procurou durante muito tempo pela verdade e foi agarrado pela Verdade, tem uma página belíssima e célebre, em que declara: "Interroga a beleza da terra, do mar, do ar rarefeito que se expande por toda parte; interroga a beleza do céu... interroga essas realidades todas. Todas te responderão: olha-nos bem e vê como somos bonitas. Sua beleza é um hino de louvor. Ora, tão lindas criaturas, ainda que mutáveis, quem as fez, se não aquele que é a beleza imutável?" (Sermão 241, 2: PL 38, 1134). Acredito que precisamos recuperar e restaurar em nossos contemporâneos a capacidade de contemplar a criação, a sua beleza, a sua estrutura. O mundo não é um magma informe; quanto mais o conhecemos, mais descobrimos nele os mecanismos maravilhosos, mais vemos nele um desígnio, mais vemos a marca de uma inteligência criativa. Albert Einstein disse que nas leis da natureza "vem a revelar-se uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos é, perante ela, apenas um reflexo insignificante" (O mundo como eu o vejo, Roma, 2005). Um primeiro caminho, pois, que leva à descoberta de Deus, é contemplar com olhos atentos a criação.
Segundo: o homem. Santo Agostinho, de novo, nos propõe uma frase famosa em que diz que “Deus está mais perto de mim do que eu de mim mesmo” (cf. Confissões, III, 6, 11). É a partir desta frase que ele formula o convite: "Não vás para fora de ti mesmo, mas torna dentro de ti: é no homem interior que habita a verdade" (A verdadeira religião, 39, 72). Este é outro aspecto que corremos o risco de perder de vista no mundo barulhento e dispersivo em que vivemos: a capacidade de parar e de olhar profundamente para dentro de nós mesmos e ler aquela sede de infinito que faz parte de nós, que nos empurra para mais longe e nos remete a Alguém que a pode saciar. O Catecismo da Igreja Católica afirma: "Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu senso do bem moral, com a sua liberdade e com a voz da sua consciência, com a sua aspiração ao infinito e à felicidade, o homem se interroga sobre a existência de Deus" (nº 33).
Terceiro: a fé. Especialmente na realidade dos nossos dias, não devemos esquecer que um caminho para o conhecimento e para o encontro com Deus é a vida de fé. Quem acredita está unido com Deus, aberto à sua graça, ao poder do amor. Assim, a sua existência se torna testemunha não de si mesma, e sim do Ressuscitado, e a sua fé não tem medo de se mostrar na vida cotidiana, de se abrir ao diálogo que expressa profunda amizade pela estrada de cada homem, e sabe acender luzes de esperança aos precisados de resgate, de futuro e de felicidade. A fé é um encontro com Deus, que fala e que age na história e que converte a nossa vida diária, transformando a nossa mente, os nossos juízos de valor, as nossas escolhas e as nossas ações concretas. Não é ilusão, escapismo, refúgio cômodo, sentimentalismo, mas envolvimento de toda a vida, anúncio do Evangelho, Boa Nova que pode libertar o homem todo. Um cristão, uma comunidade diligente e fiel ao plano de Deus, que nos amou primeiro, são uma via privilegiada para os indiferentes e para os hesitantes quanto à sua existência e ao seu agir. Isto pede que cada um torne mais transparente o próprio testemunho de fé, purificando a vida para adequá-la a Cristo. Hoje, muitos têm uma concepção limitada da fé cristã, porque a identificam com um mero sistema de crenças e de valores e não com a verdade do Deus revelado na história, desejoso de se comunicar com o homem face a face, numa relação de amor com ele. Na verdade, como fundamento de toda a doutrina e valor, temos o acontecimento do encontro entre o homem e Deus em Cristo Jesus. Ocristianismo, antes de moral ou de ética, é um evento do amor, é o aceitar a pessoa de Jesus. Por esta razão, o cristão e as comunidades cristãs devem olhar e fazer olhar em primeiro lugar para Cristo, o verdadeiro Caminho que conduz a Deus.
(Trad.ZENIT)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O O que pode realmente satisfazer o desejo do homem?



Catequese de Bento XVI na Audiência Geral de quarta- feira
CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 07 de novembro de 2012(ZENIT.org)- Publicamos a seguir o texto da catequese de Bento XVI durante a Audiencia Geral desta quarta-feira, na praça de São Pedro.
O Ano da fé. O desejo de Deus.
Queridos irmãos e irmãs,
O caminho de reflexão que estamos fazendo juntos neste Ano da Fé nos leva a meditar hoje sobre um aspecto fascinante da experiência humana e cristã: o homem traz consigo um misterioso desejo de Deus. De modo muito significativo, o Catecismo da Igreja Católica inicia com a seguinte consideração: “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair para si o homem e somente em Deus o homem encontrará a verdade e a felicidade que busca sem parar” (n27).
Afirmação esta que ainda hoje, em muitos contextos culturais parece totalmente aceitável, quase óbvia, poderia parecer talvez um desafio no âmbito da cultura ocidental secularizada. Muitos dos nossos contemporâneos poderiam de fato afirmar que não sentem por nada um desejo de Deus. Para muitos setores da sociedade Ele não é mais o esperado, o desejado, mais sim uma realidade indiferente, diante da qual não se deve nem mesmo fazer o esforço de pronunciar-se. Na verdade, aquilo que definimos como “desejo de Deus” não está totalmente desaparecido e se aproxima ainda hoje, de vários modos, ao coração do homem. O desejo humano tende sempre a determinados bens concretos, frequentemente outros que não o espiritual, e ainda se encontra diante da interrogação sobre o que realmente é “o” bem, e então a se confrontar com qualquer coisa fora de si, que o homem não pode construir, mas é chamado a reconhecer. O que pode realmente satisfazer o desejo do homem?
Na minha primeira Encíclica, Deus caritas est, procurei analisar como tal dinamismo se realiza na experiência do amor humano, experiência que na nossa época é mais facilmente percebida como momento de êxtase, de saída de si, como lugar onde o homem é atravessado por um desejo que o supera. Através do amor, o homem e a mulher experimentam de um modo novo, um graças ao outro, a grandeza e a beleza da vida e do real. Se isso que experimentam não é simplesmente uma ilusão, se de fato quero o bem do outro como via também do meu bem, então devo estar disposto a descentralizar-me, a colocar-me ao seu serviço, a ponto de renunciar a mim mesmo. A resposta à questão sobre o sentido da experiência do amor passa, portanto através da purificação e da cura da vontade, o que é necessário para o próprio bem que se quer para o outro. Precisamos praticar, treinar, e até mesmo corrigir, para que aquele bem possa realmente ser desejado.
O êxtase inicial se traduz assim em peregrinação, “êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para sua libertação na doação de si, e assim para o reencontro de si, e de fato para a descoberta de Deus” (Enc.Deus caritas est,6). Através deste caminho progressivamente poderá aprofundar-se para o homem a consciência daquele amor que havia inicialmente experimentado. E irá sempre mais tecendo o mistério que isso representa: nem mesmo a pessoa amada, de fato, é capaz de satisfazer o desejo que habita no coração humano, de fato, quanto mais autêntico é o amor pelo outro, mais isso deixa em aberto a interrogação sobre sua origem e seu destino, sobre a possibilidade que há de durar para sempre. Assim, a experiência humana do amor tem em si um dinamismo que leva além de si mesma, é experiência de um bem que leva a sair de si e encontrar-se diante de um mistério que envolve toda a existência.
Considerações análogas poderiam ser feitas também a propósito de outras experiências humanas, como a amizade, a experiência do belo, o amor pelo conhecimento: cada bem experimentado pelo homem conduz em direção ao mistério que envolve o próprio homem; cada desejo que se aproxima do coração humano se faz eco de um desejo fundamental que jamais será plenamente satisfeito. Sem dúvida, de tal desejo profundo, que esconde também alguma coisa de enigmático, não é possível chegar diretamente à fé. O homem, afinal, conhece bem o que não o satisfaz, mas não pode imaginar ou definir o que o faria experimentar aquela felicidade que traz no coração a nostalgia. Não é possível conhecer a Deus apenas a partir do desejo do homem. Deste ponto de vista surge o mistério: o homem é um buscador do Absoluto, um buscador a passos pequenos e incertos. E, todavia, a experiência do desejo, do “coração inquieto” como o chamava Santo Agostinho, já é significativa. Isso atesta que o homem é, no fundo, um ser religioso (cfr Catecismo da Igreja Católica, 28), um “mendigo de Deus”. Podemos dizer com as palavras de Pascal: “O homem supera infinitamente o homem” (Pensamentos, Ed Chevalier 438; Ed Brunschvicg 434). Os olhos reconhecem os objetos quando estes são iluminados pela luz. Daí o desejo de conhecer a mesma luz, que faz brilhar as coisas do mundo e com essa acende o sentido da beleza.
Devemos, portanto, levar em consideração que é possível também na nossa época, aparentemente muito refratária à dimensão transcendente, abrir um caminho em direção ao autêntico sentido religioso da vida, que mostra como o dom da fé não é absurdo, não é irracional. Seria muito útil, para tal fim, promover um tipo de pedagogia do desejo, seja para o caminho de quem ainda não crê, seja para quem já recebeu o dom da fé. Uma pedagogia que compreende pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, aprender ou re-aprender o gosto das alegrias autênticas da vida. Nem todas as satisfações produzem em nós o mesmo efeito: algumas deixam uma marca positiva, são capazes de pacificar a alma, nos tornam mais ativos e generosos. Outras ao invés, depois da luz inicial, parecem desiludir as expectativas que tinham suscitado e por vezes deixam amargura, insatisfação ou uma sensação de vazio.
Educar desde a infância a saborear as verdadeiras alegrias, em todos os âmbiots da existência – a família, a amizade, a solidariedade com quem sofre, a renuncia ao próprio eu para servir ao outro, o amor pelo conhecimento, pela arte, pela beleza da natureza-, tudo isso significa exercitar o gosto interior e produzir anticorpos eficazes contra a banalização e o abatimento hoje difundidos. Os adultos também precisam redescobrir esta alegria, de desejar realidades autênticas, purificando-se da mediocridade na qual possam encontrar-se enredados. Será, então, mais fácil deixar cair ou rejeitar tudo o que, embora aparentemente atrativo, se revela insípido, fonte de dependência e não de liberdade. E isso fará emergir aquele desejo de Deus do qual estamos falando.
Um segundo aspecto, que vai em paralelo ao precedente, é o não contentar-se jamais com o que foi alcançado. Somente as alegrias mais verdadeiras são capazes de liberar em nós aquela saudável inquietação que leva a ser mais exigente – querer um bem mais alto, mais profundo – e junto a perceber com mais clareza que nada de finito pode preencher o nosso coração.
Aprenderemos, assim, a tender, desarmados, ao bem que não podemos construir ou adquirir com as nossas próprias forças; a não deixar-nos desencorajar pelo cansaço ou pelos obstáculos que provêm do nosso pecado.
A este respeito, não podemos esquecer que o dinamismo do desejo está sempre aberto à redenção. Mesmo quando esse caminha por caminhos desviados, quando segue paraísos artificiais e parece perder a capacidade de ansiar o bem verdadeiro. Mesmo no abismo do pecado não se apaga no homem aquela faísca que lhe permite reconhecer o verdadeiro bem, de saboreá-lo, e de iniciar assim um percurso de subida, no qual Deus, com o dom da sua graça, não deixa jamais faltar a sua ajuda. Todos, aliás, precisamos percorrer um caminho de purificação e de cura do desejo. Somos peregrinos em direção à pátria celestial, em direção ao bem pleno, eterno, que nada jamais nos poderá tirar. Não se trata, portanto, de sufocar o desejo que está no coração do homem, mas de libertá-lo, para que possa alcançar a sua verdadeira altura. Quando no desejo se abre a janela em direção a Deus, isto já é um sinal da presença da fé na alma, fé que é graça de Deus. Santo Agostinha sempre afirmava: “Com a expectativa, Deus fortalece o nosso desejo, com o desejo alarga a nossa alma e dilatando-o deixa-o mais capaz” (Comentário da Primeira cata de João, 4, 6: PL 35, 2009).
Nesta peregrinação, sentimo-nos irmãos de todos os homens, companheiros de viagem também daqueles que não crêem, de quem está a procura, de quem se deixa interrogar com sinceridade pelo dinamismo do próprio desejo de verdade e de bem. Rezemos, neste Ano da fé, para que Deus mostre a sua face a todos aqueles que o buscam com coração sincero. Origado.
Ao final Bento saudou os peregrinos em diversas línguas e em português:
Saúdo cordialmente todos os peregrinos de língua portuguesa, em particular os fiéis brasileiros da paróquia Nossa Senhora da Penha e o grupo da diocese de Porto Alegre, para todos implorando uma vontade que procure a Deus, uma sabedoria que O encontre e uma vida que Lhe agrade. São os meus votos e também a minha Bênção.
(Trad.MEM)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Dia dos Fieis Defuntos



Espiritualidade
À sombra dos ciprestes, o amor continua
Uma reflexão sobre a comemoração dos fiéis defuntos
Francesca Pica
ROMA, quarta-feira, 31 de Outubro de 2012 (ZENIT.org) - Passear à sombra dos ciprestes romanos numa tarde fria de outono, levar flores, acender velas nos túmulos: é um ritual que, todo dia 2 de Novembro, aqui e nos diversos países, com seus próprios matizes, une a nós todos, cristãos ou não. É uma data que marca o ano, um tempo que dedicamos à memória dos que não estão mais connosco.
Em nossa cultura ocidental, a morte é, hoje, assim como ontem, um tabu, um assunto a evitar ou afastar. Justo nas partes do mundo mais avançadas, mais distante da naturalidade da vida, nos países mais evoluídos, onde há maior bem-estar, onde a concorrência torna tudo mais rápido, onde se vive correndo atrás do efêmero, justo aqui, a ideia do fim, da separação extrema, que acontecerá em algum instante indefinido, é uma fonte de medos profundos, inaceitáveis, às vezes quase paralisantes.
Então, por que a visita ao cemitério é uma ocasião que dificilmente deixamos de cumprir?
A morte é um medo ancestral. Por que visitamos, então, a casa dos mortos?
Visitamos sua casa para falar com eles. Vamos até as suas sepulturas não só para recordar o passado, mas também para apresentar, a eles, que não estão mais connosco, o nosso presente. Pedimos conselhos e conforto para as nossas escolhas de vida, especialmente quando elas são muito importantes ou quando estamos em dúvida.
Poderia parecer loucura, mas todos nós acreditamos que os mortos não nos deixam. Eles estão mais presentes do que os vivos, são guias que moldam as nossas acções, mesmo quando não nos damos conta Sentir perto de nós aqueles que se foram não significa permanecer na dor da perda. Pelo contrário, ao nos lembrarmos das pessoas que estiveram perto de nós e a quem amamos, nós redefinimos a relação que tínhamos com elas. Criamos uma nova relação, mesmo reconhecendo o fato da despedida.
No Sermão da Montanha, Jesus chamou de bem-aventurados aqueles que choram e os que estão de luto. Porque os que choram serão consolados, os sofredores encontrarão nova terra sob seus pés, conhecerão uma nova estabilidade e não ficarão sozinhos. Em sua dor, eles se abrirão para aqueles que vão lhes dar um novo suporte. O falecido nos recorda quem somos, de onde viemos, e dá significado e razão ao nosso presente; torna-se figura interior, luz em nossa alma. De ausência externa, o falecido se transforma em presença interna.
Nós nos voltamos aos que já partiram para intercederem por nós diante de Deus. Rezamos, porque só assim podemos aceitar a sua perda; sabemos que eles nos ajudam a viver de acordo com as nossas decisões. Conseguimos aceitar porque sabemos que os mortos se tornam, para nós, um sinal de bênção. É a nossa forma de não morrer aos poucos na morte daqueles que amamos e de abraçar aqueles que não estão mais aqui, mesmo sem poder tocá-los