Bento XVI não publicará a encíclica sobre a fé – embora
em fase avançada – que devia apresentar na primavera. Já não tem
tempo. E nenhum sucessor é obrigado a retomar uma encíclica incompleta
do próprio predecessor. Mas existe outra encíclica de Bento XVI,
escondida no seu coração, uma encíclica não escrita. Ou melhor,
escrita não pela sua pena mas pelo gesto do seu pontificado. Esta
encíclica não é um texto, mas uma realidade: a humildade.
A 19 de abril de 2005 um homem que pertence à raça das
águias intelectuais, temido pelos seus adversários, admirado pelos seus
estudantes, respeitado por todos devido à acutilância das suas
análises sobre a Igreja e o mundo, apresenta-se, recém-eleito Papa,
como um cordeiro levado para o sacrifício. Utilizará até a terrível
palavra «guilhotina» para descrever o sentimento que o invadiu no
momento em que os seus irmãos cardeais, na Capela Sistina, ainda
fechada para o mundo, se viraram para ele, eleito entre todos, para o
aplaudir. Nas imagens da época, a sua figura curvada e o seu rosto
surpreendido testemunham-no.
Depois teve que aprender o mister de Papa. Extirpou,
como raízes arraigadas sob o húmus da terra, o eterno tímido, lúcido na
mente mas desajeitado no corpo, para o projetar perante o mundo. Foi
um choque para ambas as partes. Não conseguia assumir a desenvoltura do
saudoso João Paulo II. O mundo compreendia mal aquele Papa sem efeito.
Bento XVI nem teve os cem dias de "estado de graça" que se atribuem
aos presidentes profanos. Teve, sem dúvida, a graça divina, fina mas
pouco mundana. Contudo teve, ainda e sempre, a humildade de aprender
sob os olhares de todos.
Foram sete anos terríveis de pontificado. Nunca um Papa
teve, num certo sentido, tão pouco "sucesso". Passou de polémica em
polémica: crise com o Islão depois do seu discurso de Ratisbona, onde
evocou a violência religiosa; deformação das suas palavras sobre a Sida
durante a primeira viagem à África, que suscitou um protesto mundial;
vergonha sofrida pelo explodir da questão dos sacerdotes pedófilos, por
ele enfrentada; o caso Williamson, onde o seu gesto de generosidade em
relação aos quatro bispos ordenados por D. Lefebvre (o Papa revogou as
excomunhões) se transformou numa reprovação mundial contra Bento XVI,
porque não tinha sido informado sobre os discursos negacionistas da
Shoah feitos por um deles; incompreensões e dificuldades de pôr em ação
o seu desejo de transparência quanto às finanças do Vaticano; traição
de uma parte do seu grupo mais próximo no caso Vatileaks, com o seu
mordomo que subtraiu cartas confidenciais para as publicar...
Não teve nem sequer um ano de trégua. Nada lhe foi
poupado. Às violentas provações físicas do pontificado de João Paulo
II, ao atentado e ao mal de Parkinson, parecem corresponder as
provações morais de rara violência desta litania de contradições
sofrida por Bento XVI.
Ao renunciar, o Papa eclipsa-se. À própria imagem do seu pontificado. Mas só Deus conhece o poder e a fecundidade da humildade.
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