quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Catequese do 1º Domingo da Quaresma


Sé Patriarcal, 17 de Fevereiro de 2013


Neste Ano da Fé, com o qual celebramos o cinquentenário do início do Concílio Ecuménico Vaticano II, nas Catequeses da Quaresma meditaremos na Fé do Concílio, isto é, a compreensão da fé católica que brota dos textos conciliares. O Magistério solene da Igreja é sempre uma expressão de fé e está ao serviço da fé de todo o Povo de Deus. Descobrimos aí a fé de todos aqueles Bispos reunidos com o Santo Padre, como pastores, conduzindo o Povo de Deus para a compreensão da Igreja, enviada ao mundo contemporâneo para anunciar o Evangelho de Jesus. As Catequeses Quaresmais farão, assim, uma unidade com o programa em curso “Acreditar com o Concílio”, que nos leva, assim o espero, a ler o Concílio com fé e a aprofundar a nossa fé lendo e meditando textos do Concílio.

Neles encontramos uma visão completa da fé católica, na sua simplicidade e na sua densidade envolvendo toda a existência do homem, o sentido do Universo e da História humana. Usando a expressão de Santo Agostinho, encontramos aí “a fé com que acreditamos” e “a fé que acreditamos”, isto é, o abandono ao Senhor que nos dirige a sua Palavra e nos convida à comunhão de amor e as verdades a que essa Palavra amorosa de Deus nos conduz, acerca de Deus, acerca do homem e do seu destino, acerca do mundo que anseia por essa revelação do amor de Deus. Meditando os textos do Concílio aprendemos que só o ardor da caridade suscitado em nós pela escuta da Palavra de Deus, nos leva a acreditar em verdades. A fé manifesta-nos a união profunda entre a verdade e a caridade.

A fé nasce da escuta da Palavra de Deus

1. O Concílio, falando do ministério dos sacerdotes como anunciadores da Palavra, afirma: “O Povo de Deus é reunido, antes de mais, pela Palavra do Deus vivo (…). É a Palavra de Deus que suscita a fé no coração dos não cristãos e a alimenta no coração dos cristãos; é ela que faz nascer e crescer a comunidade dos cristãos, como diz o Apóstolo: «a fé vem do que ouvimos e o que ouvimos vem da Palavra de Cristo» (Rom. 10,17)[1].
A Palavra de Deus, o facto de Deus nos falar, é o mistério mais denso e mais simples da História da Salvação: tem a simplicidade do amor e a densidade do mistério de Deus e do mistério do homem, profundamente interligados. Deus criou o homem para poder revelar-se-lhe, abrir-lhe o coração, deixá-lo penetrar no seu mistério. O homem foi criado para a intimidade da relação com Deus. A revelação como ela acontece no contexto da história humana, mostra que o pecado dos homens não levou Deus a mudar o seu desígnio de intimidade com o homem. Jesus Cristo, Deus feito Homem, não é uma saída de emergência; esteve sempre previsto nesse eterno desígnio de intimidade entre Deus e o homem.

Deus é puro Espírito. Antes de criar o homem, criou os outros seres espirituais, a que a Sagrada Escritura chama “Anjos”, isto é, “mensageiros”. Ao criá-los parece que Deus já preparava a aventura da sua intimidade com o homem, a quem criou à sua Imagem e semelhança, apesar de ser corpóreo (cf. Gen. 1,27). Essa é uma novidade na experiência divina: chamar à Sua intimidade de amor um ser corpóreo, isto é, um ser que exprime o seu carácter espiritual na corporeidade. Nessa criação do homem à sua Imagem está claramente expresso o desígnio de Deus ser Homem, de se fazer Homem, tornando perfeita a sua Imagem na Sua criatura. A incarnação do Verbo de Deus está anunciada na criação do Homem. Contemplando o Homem, plenitude de toda a criação, o salmista reza: “Quem é o homem para que Te lembres dele, o filho de Adão para que dele Te ocupes? Fizeste-o pouco inferior a um Deus e coroaste-o de glória e de honra” (Sal. 8,5-6). Esta grandeza sublime com que Deus criou o Homem, anuncia o desejo de se fazer homem, para poder falar de igual para igual, poder amar com amor humano. Este desígnio mantém-se inalterado mesmo na fragilidade da liberdade humana; então o desígnio torna-se redentor.

Na longa história da fragilidade humana a que vulgarmente chamamos pecado, e que começou logo no início da humanidade, a manifestação mais grave foi o homem querer substituir-se a Deus, acabando por esquecê-l’O. Esta questão torna-se o principal problema de civilização: “O homem tem necessidade de Deus, ou, pelo contrário, as coisas continuam bastante bem sem Ele”? É a questão que Bento XVI põe aos nossos contemporâneos. Se as coisas andassem bem mesmo sem Deus, a decisão de acreditar seria, no fundo, irrelevante. E o Santo Padre continua: “Se o homem se esquece de Deus, perde progressivamente a vida, porque a sede de infinito está presente no homem de um modo que ninguém o pode extinguir. O homem foi criado para a relação com Deus e precisa d’Ele”[2].

O desígnio de Encarnação preside à História da Salvação
2. Toda a Palavra de Deus surge no dinamismo de incarnação, no desejo de Deus ser Homem, poder entrar em comunhão de amor com os homens. Só Deus pode quebrar este abandono de Deus por parte dos homens, respondendo àquela nostalgia do infinito que permanece sempre no coração de todos os homens. É certo que na História da Salvação, Deus, por vezes, envia aos homens os seus “mensageiros” celestes, ou lhes fala através dos ritmos da natureza. Mas é através da Palavra humana dos Profetas que Deus se revela claramente, de Homem para Homem. Deus fala com linguagem humana até ao dia em que fazendo-se Homem, há plena identificação entre a palavra humana e a Palavra de Deus. Na pessoa de Jesus tudo é Palavra, o discurso, o silêncio orante, os milagres. Na Palavra dos Profetas vai estando presente neste diálogo de Deus com os homens, a Palavra eterna de Deus feita Homem. É um grande mistério. Mas não é só Deus que é mistério; é também o homem.

Deus falar aos homens é um desígnio de amor. Diz o Concílio: “Agradou a Deus, na Sua sabedoria e na Sua bondade revelar-se pessoalmente e dar a conhecer o mistério da Sua vontade graças ao qual os homens, por Cristo o Verbo feito carne têm, pelo Espírito Santo, acesso ao Pai e são tornados participantes da natureza divina”[3]. Em cada palavra revelada está presente o desígnio divino de salvação, cuja plenitude se atinge em Jesus Cristo. Cristo, Verno Incarnado, é a plenitude da Palavra de Deus. Não admira que em toda ela se exprima este mistério da incarnação. Deus abre o seu coração e a profundidade do seu mistério através de palavras humanas, ou seja, através da sua Palavra eterna feita Homem. Em toda a palavra profética está presente a plenitude da revelação, Jesus Cristo Palavra Incarnada. Os profetas, possuídos por Deus, falam em nome de Deus. A sua palavra é humana, e os homens podem acolhê-la, e é divina, porque eles dizem o que Deus quer dizer ao Seu Povo. Escutá-la é entrar em comunhão com Deus e não apenas com o Profeta que a disse. A fé é escuta de Deus e não apenas dos profetas. Só em Jesus Cristo a fé é simultaneamente escuta de Deus e do Profeta que a pronunciou.


A Fé é a escuta obediente da Palavra de Deus
3. Quando o homem identifica nessa palavra humana a voz de Deus que se lhe dirige, a sua inteligência, o seu coração e a sua liberdade ficam perante Deus, é um momento de mistério. Ou rejeita escutar o Senhor ou acolhe essa Palavra e aceita confrontar a sua vida com o projeto de Deus. Essa escuta da Palavra é a fé. O Concílio diz: “A Deus que Se revela é devida a obediência da fé, pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus numa completa homenagem da inteligência e da vontade a Deus que se revela e na adesão voluntária à revelação que nos faz”[4]. Esta fé é, pois, um momento que toca radicalmente no sentido da nossa existência. Sente-se que a vida é para ser vivida com Deus, que Ele tem sempre uma Palavra a dizer sobre o desenvolvimento da vida que nos deu.

Este texto conciliar diz que esta fé é obediência, inspirando-se em São Paulo que fala da “obediência da fé” (cf. Rom. 16,26). É a aceitação sem limites de Deus e da sua vontade que a sua Palavra nos revelou. Esta obediência é um ato de amor porque só o amor a torna possível.

Nesta escuta obediente da Palavra de Deus, os cristãos podem ser ajudados por exemplos e modelos: de pessoas que eles conhecem e que dão testemunho dessa obediência confiante, pelos Santos e, sobretudo, contemplando Nossa Senhora. O Concílio diz que na sua obediência de fé ela é modelo da Igreja: “A Mãe de Deus é o modelo da Igreja na ordem da fé, da caridade e da perfeita união a Cristo”[5]. “Ela trouxe à obra do Salvador uma cooperação sem igual pela sua obediência, a sua fé, a sua esperança, a sua caridade ardente”[6]. Tudo isso ela exprime na sua resposta ao Anjo: “Eu sou a Serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra” (Lc. 1,38). Bento XVI comenta assim esta resposta de Maria: “É o momento da obediência livre, humilde e simultaneamente magnânima, na qual se realiza a decisão mais sublime da liberdade humana”. Com esta resposta de Maria o Anjo sente que a sua missão está conseguida e afasta-se “e Maria fica sozinha com a tarefa que verdadeiramente supera toda a capacidade humana. Não há anjos em seu redor; ela deve prosseguir pelo seu caminho, que passará através de muitas obscuridades, a começar pelo espavento de José perante a sua gravidez até ao momento em que se diz de Jesus que está «fora de si» (Mc. 3,21; cf. Jo. 10,20), até à noite na Cruz. Quantas vezes, em tais situações, Maria terá voltado interiormente à hora em que o anjo de Deus lhe falou, terá escutado de novo e meditado a saudação «alegra-te, cheia de graça», e as palavras de conforto «Não temas»… O anjo parte, a missão permanece e, juntamente com ela, matura a proximidade interior de Deus, o íntimo ver e tocar a sua proximidade”[7].

Também nisso Maria é modelo de todos os crentes. Na sua peregrinação da fé terão de voltar a ouvir muitas vezes a Palavra que lhes mudou a vida e a encontrar nela luz nos momentos de obscuridade, força nos momentos de fraqueza, a alegria de sentir que na dureza da caminhada a solicitude de Deus nos acompanha.

A fecundidade da Palavra de Deus
4. Na peregrinação da fé há atitudes que é preciso cultivar, que exprimem a nossa fidelidade ao projeto que Deus nos revelou. A primeira é procurar que a Palavra de Deus que escutámos dê fruto em nós. A Sagrada Escritura afirma claramente a eficácia da Palavra de Deus que realiza sempre o que anuncia (cf. Num, 23,19; Is. 55,10ss). A Palavra de Deus precede o acontecimento mas tende irremediavelmente a ser acontecimento.

Na nossa caminhada da fé esta Palavra de Deus é, tantas vezes, uma Palavra à espera, como o foi nas grandes profecias. A expressão é de Bento XVI, referindo-se à Profecia de Isaías, anunciando que uma Virgem conceberá e dará à luz o Emanuel (cf. Is. 7,14-15). Essa é uma Palavra à espera até Jesus nascer de Maria[8]. A fé é um chamamento à santidade. A Palavra de Deus em nós está à espera do acontecimento, de realizar em nós o que anuncia. Quantas vezes também em nós a Palavra de Deus que escutámos no início da nossa fé, continua a ser “uma Palavra à espera”.

Um outro aspeto da nossa fidelidade na caminhada da fé é o respeito pela dimensão de incarnação da Palavra que Deus nos dirige. Ela é palavra da Escritura, escutada sobretudo quando celebramos e rezamos; é palavra da Igreja, através do ministério apostólico. A Palavra de Deus incarna na Palavra da Igreja. Os profetas do Antigo Testamento eram possuídos por Deus antes de falarem em nome de Deus. No Novo Testamento aqueles que exercem o ministério da Palavra estão unidos a Cristo, são um com Cristo, que continua a ser Palavra na Palavra da Igreja. É por isso que quando anunciam a Palavra esta é para eles e para aqueles que os ouvem, convite de Deus a abraçar o caminho da salvação.

Cristo é a última Palavra de Deus
5. Cristo é a plenitude da revelação, é a Palavra definitiva que Deus dirige aos homens. A fé cristã é sempre fé em Jesus Cristo, mesmo quando é resposta à Palavra de Deus do Antigo Testamento ou do ensinamento dos Apóstolos. O Concílio ensina: “Com efeito Deus enviou o Seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para permanecer no meio deles e fazê-los conhecer os segredos de Deus. Portanto Jesus Cristo, o Verbo feito carne, Homem enviado aos homens, pronuncia as palavras de Deus e completa a obra de salvação que o Pai Lhe mandou realizar”[9].

Esta dimensão cristocêntrica da fé é essencial. Não se trata de acreditar numa qualquer ideia de Deus, veiculada pela cultura. Acreditar é escutar o Senhor, unir-se à Pessoa de Jesus, que é Palavra de Deus na totalidade da sua existência e do seu mistério. É Ele que nos levará ao Pai e nos fará mergulhar na insondável comunhão de vida e de amor com as Pessoas divinas. É Ele que nos comunica o Espírito Santo. É por isso que a esses crentes se chama cristãos.

Esta adesão a Cristo Palavra é uma relação de amor. A fé desabrocha espontaneamente na caridade e na esperança. Enquanto escuta da Palavra incarnada, a fé faz sentir ao cristão que a primeira expressão da caridade é o amor a Jesus Cristo e, por Ele, à Santíssima Trindade. O amor dos irmãos decorre desse amor a Jesus Cristo, segundo o seu próprio desejo: “O que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos, a Mim o fazeis” (Mt. 25,40).

Por outro lado essa fé como adesão amorosa a Cristo suscita a esperança. Só nela podemos viver profundamente a fé. O Concílio afirma: “Unidos, pois, a Cristo na Igreja e marcados pelo selo do Espírito Santo, «o qual é garantia da nossa herança» (Ef. 1,14), chamamos e na realidade somos filhos de Deus (cf. 1Jo. 3,1),mas não aparecemos ainda com Cristo na glória (cf. Col. 3,4), na qual seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é (cf. 1Jo. 3,2). Assim, «enquanto permanecermos neste corpo, vivemos exilados longe do Senhor» (2Cor. 5,6) e, apesar de possuirmos as primícias do Espírito, gememos dentro de nós (cf. Rom. 8,23) e ansiamos por estar com Cristo (cf. Fil. 1,23)”[10]. O anúncio da fé é sempre o anúncio da esperança, com amor.

6. Depois da morte e ressurreição de Jesus, escutar Cristo Palavra acontece quando ouvimos a sua Palavra e celebramos, nos sacramentos, a sua Páscoa. Os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, são o momento da síntese harmónica entre a Palavra da Escritura escutada e a Páscoa celebrada. O Senhor quis deixar-nos, nos sacramentos, essa maneira nova de nos unirmos a Ele escutando-O mais profundamente[11].
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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