Ser
herdeiro tem tanto de graça quanto de fardo. Tem tanto de vantagem
quanto de tarefa. Por um lado, ao herdeiro é entregue algo que não
construiu, algo que não conquistou. De repente, ele vê-se proprietário e
senhor de um património que gerações passadas foram reunindo. É-lhe
pois, sem qualquer mérito da sua parte, dado gozar do tesouro que outros
foram construindo. Mas por outro lado, o herdeiro é também alguém sobre
quem repousa a expectativa de estar à altura do bem que recebe e,
sobretudo, à altura da confiança de quem lho entrega. Ele sabe-o e, por
isso, não poucas vezes a herança se transforma também em fardo. Não é
apenas a pressão para não delapidar a herança. É ainda o natural desafio
de aumentar e enriquecer o bem recebido. Porque um dia será ele a
confiá-lo a outro.
A
dinâmica da herança está inscrita no próprio código genético da fé
cristã. «O Senhor é a minha herança» (cf. Sl 16 [15], 5), diz o
salmista. E Jesus anuncia para os justos: «Recebei em herança o Reino
que vos está preparado» (Mt 25, 34). A própria transmissão da fé é isso
mesmo: legar o Evangelho como tesouro e herança a outros, a outras
gerações.
Celebrar
os 50 anos do Concílio Vaticano II é celebrar esta condição de sermos
hoje seus herdeiros. De nos deixarmos confrontar com a questão: Que
fazemos desta herança? Como a temos enriquecido? Como abraçamos o que o
Vaticano II tem de graça e de tarefa? De modo bem sugestivo, G. Routhier
(estudioso do Concílio) relia recentemente estes 50 anos à luz de cinco
grandes modos de se ser herdeiro (in L’Osservatore Romano
18/1/2013, 5). Há, em primeiro lugar, aquele tipo de herdeiro que se
apressa em esbanjar tudo quanto recebeu. Seja por ignorância da riqueza
recebida, seja pelo embaraço que esta lhe possa causar, este
desafazer-se da herança significa sempre um não lhe reconhecer o devido
valor. Em segundo lugar, há aquele tipo de herdeiro que, talvez tomado
pelo receio de não estar à altura dos seus antepassados, como que
congela a herança, na ilusão de que desse modo lhe é mais fiel. Mas
assim nunca chega a gozar do bem recebido e, mais grave ainda, não chega
a dar-lhe vida. Em terceiro lugar, uma herança pode sempre ser
recusada. Talvez o herdeiro não queira nada dos seus antepassados e,
portanto, queira romper com esse laço que o liga aos seus antecessores,
sem se dar conta que ele também será um dia antepassado de quantos se
lhe seguirão. Em quarto lugar, há aqueles que enleiam a herança numa
teia de discussões e contendas estéreis. Será de todos bem conhecido o
poder destruidor das acirradas disputas entre herdeiros. É um outro modo
de matar a herança, neste caso pelo seu intenso desmembramento. Tudo
isto pode ser feito (e tem sido feito) também com o Vaticano II.
O
quinto modo identificado por G. Routhier é aquele apontado na parábola
evangélica: uma herança só é bem recebida se posta a render (cf. Mt 25,
14-30). É com este desafio que estamos hoje confrontados: fazer
frutificar o tanto que do Vaticano II recebemos. Resistindo a todas as
tentações de desvalorização, de fechamento, de recusa ou de fragmentação
na recepção do Concílio. Por certo as atitudes mais fáceis. Como
sempre, a estrada mais fecunda coincide com a mais exigente. Tomar a
sério a herança conciliar. Assumi-la. Não apenas como uma riqueza que
nos legou o passado. Sobretudo como um tesouro que nos enriquece o
presente. Talvez só assim estaremos, de verdade, à altura da herança que
nos legaram os Padres conciliares
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